25 de abril de 2013

Bom dia, mundo!




Era o dia seguinte. O dia depois do sonho ruim, que durou anos. O dia seguinte da minha saída da sala de eterna espera, da desistência de ser atendida. Era o dia depois de amanhã, depois do amanhã que nunca chegava. Acordei nesse dia, simples assim. Com o sol entrando pela janela e clareando toda os medos embaixo da cama, com o vento levando toda a sujeira embaixo do tapete. Era o dia do recomeço, do começo do fim e do resto da minha vida. Da minha paz. Dormi, como sempre, esperando que tudo passasse e nessa noite realmente passou. Acordei sem sangue, sem curativo, com uma pequena cicatriz. Pude levantar sem algemas, lavar o rosto sem maquiagem, olhar pra trás sem sentir dor. Era data de faxina, apagar fotos, jogar fora cartas, me livrar de qualquer prova que pudesse ser usada contra mim num dia banal de saudade. Exclui telefones, fiz questão de esquecer datas. Não tinha pontada no estômago, preocupação, agonia, arrependimento. Tava tão vazia, que não sai andando, flutuei. Bom dia, mundo. E os olhos doeram, como quem passa anos numa caverna escura e, de repente, tem contato com a luz. Mais logo se acostumaram, com um alívio de quem volta a ver. Como quem volta a reparar nas flores. Flores  que você nunca me deu. Lembro e sorrio, pensando no seu “Te ligo! e em como isso nunca aconteceu. Gangorra me enjoa e pra não vomitar, te deixo sozinho, brincando de castigo com alguém nunca melhor do que eu. Vê se não fica triste, porque toda solidão que existe nunca vai superar todo o tempo que você me enlouqueceu. Fica bem, fica sem, porque acabou o jogo, camisa de força pra mim já virou roupa básica e decorei todas as suas desculpas clássicas, pra te deixar esperando até o fim. Sou louca, livre, sou minha e hoje é o dia de viver pra mim.  


19 de abril de 2013

O Assassino de Mídias Sociais, por Ray Bradbury


Num dos contos do livro Os Frutos Dourados do Sol, de Ray Bradbury (autor de Fahrenheit 451), um dos personagens é um assassino em série. Mas de aparelhos de comunicação. Ele, diferente da maioria de seus contemporâneos (do suposto futuro) sentia-se oprimido com a ideia de estar o tempo inteiro em contato com os amigos e até desconhecidos através das diversas ferramentas de comunicação então disponíveis.

Na realidade do conto, as pessoas usavam rádios, relógios comunicadores e outros aparelhos simplesmente para dizer onde estavam indo, o que estavam comendo, como estavam se sentindo e também para trocar informações entre uns e outros.
Tirando os aparelhos (que o autor não poderia prever quais seriam, já que o conto foi escrito na década de 50, talvez antes), acredito que você já tem uma certa familiaridade com algo assim. Talvez você já tenha feito checkins no Foursquare, dito o que estava pensando no Twitter, colocado a foto de uma refeição ou outra amenidade no Foursquare ou respondido alguma pergunta mais ou menos íntima feita pelo Facebook.
Além das informações que você passa adiante, há as informações dos seus amigos (incluindo inimigos, colegas, conhecidos e gente de quem você nunca ouviu falar) numa inundação, uma verdadeira torrente de mensagens, algumas até úteis, outras nem tanto e outras, ainda, completamente inúteis.
Não vou dizer que isso seja ruim em si. Pelo contrário, é bom sentir-se em contato com as outras pessoas. Porém, não duvido que cada um de nós, em algum momento tenha secretamente fantasiado por alguns bons dias de silêncio, sem absorção desse excesso de informações. Talvez no meio do mato.
O personagem de Bradbury (o nome do conto é O Assassino) conta ao psiquiatra, na cela em que está detido, a sensação de cruelmente liquidar com o radiocomunicador de seu carro, enfiando nele generosos bocados de sorvete de chocolate:
— O silêncio. Meu Deus, foi lindo. O rádio do carro cacarejando o dia inteiro: Brock, vá ali; Brock, venha cá; Brock,entre em contato; Brock, rompa o contato; Ok, Brock; hora de almoço, Brock; fim do almoço, Brock; Brock, Brock. O silêncio era tanto que parecia que eu tinha posto sorvete nos ouvidos.
— O senhor parece gostar muito de sorvete.
— Eu fiquei simplesmente passeando e sentindo o silêncio. É um enorme tampão, feito da flanela melhor e mais macia que existe. Eu fiquei sentado no meu carro, sorrindo, sentindo aquela flanela nos ouvidos. Fiquei embriagado com a liberdade!
Antes de voltar para o paraíso silencioso de sua cela, no hospital, o personagem faz uma reflexão:
Tudo era tão encantador no início. A idéia dessas coisas, da utilidade prática, era maravilhosa. Eram quase brinquedos, mas as pessoas se envolveram demais, foram longe demais, enredaram-se em um padrão de comportamento social e não conseguiram mais sair. Não conseguiam sequer admitir que estavam envolvidas nele. Aí, racionalizaram a situação e passaram a ignorar seus próprios erros. “A idade moderna”, diziam. “Condições.” “Estresse.” Mas preste atenção no que lhe digo. Tive uma cobertura mundial: TV, rádio, filmes. Eis aí a ironia Já faz cinco dias. Um bilhão de pessoas ficou me conhecendo. Dê uma olhada na seção financeira dos jornais. Logo. Talvez hoje mesmo. Aguarde um pique súbito, um aumento nas vendas de sorvete de chocolate!
Que tal tomar um sorvete de chocolate hoje e não dizer onde (no Foursquare), não colocar a foto da sobremesa (no Instagram), não reclamar do atendimento da sorveteria (no Twitter) e não dizer o que sentiu (no Facebook)?
Só por hoje.
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